alumbramentos

9.30.2005

Valsa para uma menininha

Menininha do meu coração
Eu só quero você a três palmos do chão
Menininha, não cresça mais não
Fique pequinininha na minha canção
Senhorinha levada batendo palminha
Fingindo assustada do bicho-papão
Menininha, que graça é você
Uma coisinha assim começando a viver
Fique assim, meu amor, sem crescer
Porque o mundo é ruim, é ruim
E você vai sofrer de repente uma desilusão
Porque a vida é somente seu bicho-papão
Fique assim, fique assim, sempre assim
E se lembre de mim pelas coisas que eu dei
E também não se esqueça de mim
Quando você souber enfim de tudo que eu amei

(Toquinho e Vinícius de Moraes)

9.16.2005

- Alô?
Tinha dito muitas besteiras, falar demais era isso!
Não ter o que dizer devia durar 5 minutos, depois:
- Tchau!
Queria engolir um sabonete, descia adstringente goela abaixo, quem sabe limpava até o estômago.
-Cala a boca! - voto de silêncio.
O médico mandava botar a língua pra fora e dizer "a" continuamente:
-Vamos ver o que ficou entalado aí na garganta mocinha...
O que ela pensava é que a língua servia melhor para outras coisas.
Encarava o médico acintosa, mas ele não tinha nem culpa e nem desejo, naquele momento.
Saiu com receita em gotas e bolinhas.
E com a cabeça num lugar bem distante do corpo.
O quarto era precário, feito de passagem, cheirando os muitos tipos de confusões que tinham feito ali dentro.
Ela acordou moída porque ele tinha sonhado que estava dormindo sozinho.
Levantou quieta, escorregando para os pés. A pouquíssima luz entrava pela porta mal encostada do banheiro.
Tomar banho com a porta fechada e música
O vitrô do banheiro dava para um corredor comum, mas quanto a isso podia ficar tranquila, ninguém se mete no choro escondido dos outros.
O que gostaria de ouvir para tentar começar o dia? Todos os cds diziam a mesma coisa, estava cansada de se repetir.

Encarou o silêncio onde era difícil projetar alguma saída - o banheiro ecoava.
- Ana! (Ana, Ana, Ana)
- Oi? (Oi, Oi, Oi)
- Você vai tomar banho vai? (Vai!, Vai!, Vai!)
- Acho que sim, tudo bem? (Bem?, Bem?, Bem?)
- Não, tudo bem, é que preciso sair meio rápido! (Rápido!, Rápido! Rápido!)
- Eu abro... (Abro, Abro, Abro)
Destrancou a porta e abriu o chuveiro.
Ele entrou olhando muito.
De costas pra ele, com os olhos apertados, ela ouvia a música que principiava lá fora. Tinham muitos vizinhos.
A voz feminina dizia coisas que serviam pra ele, mas a música era ela quem gostava muito.
Não conseguiria comentar.
Será que ele estava ouvindo?

É NÓIS!

9.15.2005

OBSERVO DO BALCÃO


- de um lado do balcão -

Elas conversam.

- Encontrei seu ex- hoje. Ele perguntou de você...
- Ah é? Disse o quê?
- (risada) Perguntou se você está namorando...

[ RISADAS]


- na outra ponta do balcão -

Ele observa.

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A conversa continua...

Ela conta sobre o namoro. Sobre o fim dele. Conta histórias.
Sem nenhum peso.

Ele observa de canto de olho.
(apreensivo)

Ela percebe que ele está ouvindo a conversa.

Ele fica agitado. Acende um cigarro.
Começa a andar de um lado para outro.
Faz várias coisas que não precisam ser feitas.
Vai até o carro buscar alguma coisa.

Elas encerram a conversa. Ela vai atrás dele.


- do lado de fora do bar -

- Sai daí... tá chovendo.
- Não tá chovendo não... já parou.
- É claro que tá chovendo... sai daí... vai ficar doente.
- Não... tá só chuviscando.

(teimoso)

Ela entra na chuva. Ao lado dele.

(desconcertado)

- Sai daqui... tá chovendo.
- Mas você disse que não estava... que só estava chuviscando...

(ele a abraça. saem da chuva. entram no bar)


- na pista de dança -

Abraçam-se.
Ele a olha nos olhos longamente.
Ela sabe que é uma pergunta. Ele só quer saber se está tudo bem.
(inseguro)
Ela o beija e o faz entender. Ela está com ele.
Eles dançam.
Ele se acalma

(...)


- fim da noite. dentro do carro -

Ele deixa-a em casa. Despedem-se.

- Desculpa por hoje...
- Desculpa por que?
- Molecagem minha...
- (interrogação)
- Ah... fiquei com ciúmes ouvindo você falar do seu ex-... não dá risada... é sério.


9.06.2005

Casamento

Há mulheres que dizem:

Meu marido, se quiser pescar, pesque,

mas que limpe os peixes.

Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,

ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.

É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,

de vez em quando os cotovelos se esbarram,

ele fala coisas como "este foi difícil"

"prateou no ar dando rabanadas"

e faz o gesto com a mão.

O silêncio de quando nos vimos a primeira vez

atravessa a cozinha como um rio profundo.

Por fim, os peixes na travessa,

vamos dormir.

Coisas prateadas espocam:

somos noivo e noiva.
(Adélia Prado)